Por Abner Santos
“A música é diferente aqui, as vibrações são diferentes. Não são como no planeta Terra, sons de armas, fúria e frustração. (…) Vamos instalar uma colônia para as pessoas pretas aqui. Veremos o que somos capazes de fazer em um planeta só para nós, sem os brancos. Beberemos da beleza deste planeta… isso afetará nossas vibrações, para o bem é claro. Outro lugar no universo, sediado em outra estrela. É aí que o “alter destiny” entra: a primeira coisa que é necessária é considerar o tempo oficialmente encerrado. Acordaremos no outro lado do tempo, e os traremos aqui por teletransporte, transmolecularização… ou melhor ainda! Teletransportarei o planeta inteiro através da música.”
Sun Ra
Essa é a primeira fala de Sun Ra, em seu filme Space is the Place de 1974, chegando a um planeta alienígena e ouvindo sua música pela primeira vez. Sun Ra foi um artista norte americana negro, músico multiinstrumentalista, que atuou desde início da década de 60 com o chamado “Jazz espacial”. É importante lembrar que na época, quase todas as atividades humanas tinham uma vertente espacial. Mas a música de Sun Ra era algo a mais. Não era considerado jazz por uns, nem música por outros. O jazz espacial psicodélico de Sun Ra incomodava mais do que pela simples natureza caótica do som (que de fato acredito que não tenha sido feita para agradar alguém). Mas é aí que mora sua genialidade. Muito antes de Michael Jackson, Madonna, Cindy Lauper, Lady Gaga, Sun Ra adotou uma estética e uma narrativa alienígena e psicodélica em que ele era um salvador extraterrestre do povo negro, que promete e cumpre a promessa de voltar a Terra. O “alter destiny”.
Sun Ra merece um lugar muito respeitável entre os artistas negros mais importantes do século XX, porque sua obra só faz sentido a luz de seu contexto histórico e político. Ele foi contemporâneo de Martin Luther King, que foi assassinado em 1968, com 39 anos, em busca do fim do regime de profunda segregação racial eugênica nos Estados Unidos. O filme Space is the Place foi lançado 6 anos depois desse crime racista. Na época, a segregação racial era uma política de estado, que vigorava amparada em leis, que separavam lugares para brancos e negros em todo e qualquer lugar que eles precisassem conviver. Ônibus, bancos, hotéis, restaurantes, trens, estações, teatros, banheiros e até mesmo bebedouros eram organizados separando o espaço dos brancos e o espaço dos negros- quando estes eram permitidos. Havia uma intensa campanha conservadora contra o casamento entre raças, e crianças mestiças sofriam duras estigmatizações. Ah! Sun Ra também foi contemporâneo da Ku Kux Klan, seita racista violenta que cometeu conhecidos crimes abomináveis.

Neste tempo, o estadounidense conservador médio tinha duas grandes preocupações: os negros e o comunismo. Na guerra fria, duas narrativas de um modelo econômico que representasse a mais justa interpretação dos conceitos de liberdade e propriedade, disputavam o mundo. Cada avanço tecnológico e conquista em uma corrida armamentista, nuclear, tecnológica e espacial, contava muitos pontos no imaginário da humanidade. Em 1957, a União Soviética lançou o Sputnik, um satélite de comunicação via rádio do tamanho de uma bola de praia, que foi o primeiro objeto feito por mãos humanas a se tornar uma nova luz no céu. Isso assustou muito os estadounidenses, que se sentiram ameaçados, e com razão. Um objeto de uma nação inimiga estava sobrevoando o espaço aéreo americano, poderia servir para a espionagem ou até mesmo para lançar bombas. Um ano mais tarde, a NASA foi criada.

A União Soviética continuou acumulando pontos na corrida espacial, o primeiro animal no espaço ( a cadela Laika), primeiro ser humano no espaço (Yuri Gagarin), primeira caminhada espacial, primeiro satélite solar, entre outros. A elite estadounidense sabia que para se equiparar a União Soviética na corrida espacial, teriam que ter pelo menos um grande feito, e anunciaram o projeto Apollo, que prometeu pisar na lua e voltar com segurança em 10 anos.
A exploração espacial tomou o imaginário humano de forma muito profunda, estávamos empolgados com as novas conquistas, e imaginamos que a empolgação duraria para sempre. Desenhos como “Os Jetsons” surgiram para ilustrar o futuro que nos aguardava nos anos 2000. Uma parte da humanidade estava otimista, olhando para o céu, e imaginando um futuro ingênuo de carros voadores, cafés da tarde na lua e cidades flutuantes, enquanto os negros lutavam por elementos básicos de cidadania e igualdade.
O contraste entre essas duas realidades era grande demais para não ser explorado pelos artistas, e é aí que entra o “alter destiny”.
A Terra, ou pelo menos os Estados Unidos, era um lugar hostil aos negros, e a única função concebível da viajem espacial, se é que havia alguma, era achar outro planeta onde os negros pudessem se desenvolver plenamente, e levá-los para lá. Ainda mais interessante é a forma que Sun Ra afirma que vai transportá-los: através da música. O som teria uma capacidade de libertação, de expressão, de revolta, de destruição. A cena da chegada de Sun Ra na Terra é o ponto alto do filme. “A música é parte de um outro amanhã, uma outra língua, dizendo coisas da natureza, de como ela deveria ser. Falando coisas da negritude, sobre o vácuo.”
Space is the place nos faz questionar nossas prioridades e nos lembra que pensar o futuro não pode ser uma atividade fútil e ingênua, mas tem que ser uma atividade rigorosa de esperança e de compromisso com o presente.
“Sim, você é música também. Vocês são instrumentos. Todos deveríamos estar tocando nossas partes nesta vasta orquesta do cosmos.” – Sun Ra diz aos negros quando retorna a Terra.
Muito bom o texto já vou correndo assistir o “Sputnigga” Sun Ra
Assiste e conta pra gente, Thiago!